Duas mulheres, Setembrina e Mercês, separadas por geografias e contextos diferentes, mas unidas por uma vida de lutas, memórias que transcendem gerações e pela sombra do Alzheimer, uma doença que lhes roubou a essência, mas não o legado. Em suas histórias, encontramos não apenas reflexões sobre as dificuldades de uma época, mas também um retrato das transformações culturais, sociais e familiares que marcaram o Brasil ao longo do século XX.
Raízes de Setembrina: O peso da tradição e a busca pelo saber
Setembrina Fernandes Martins da Rocha nasceu em São Paulo, em 1939. Cresceu sob o jugo de uma madrasta autoritária, que lhe negou o direito à educação. A infância foi de trabalho árduo, cuidando da casa enquanto os irmãos podiam ir à escola. Essa privação moldaria uma obsessão pelo aprendizado que só seria realizada na maturidade. Quando fugiu para o Paraná com Pedro, seu amor de infância, o casal iniciou uma nova jornada como agricultores, enfrentando as dificuldades de construir uma vida em terras distantes. A mudança para o Mato Grosso, onde trabalharam com café, trouxe estabilidade financeira, mas não apagou os desafios emocionais de suas memórias.
Após anos de dedicação ao trabalho, Setembrina finalmente realizou o sonho de aprender a ler, já idosa, por meio do programa EJA (Educação de Jovens e Adultos). No entanto, a alegria foi interrompida pelo diagnóstico de Alzheimer, que progressivamente apagou as conquistas que tanto valorizaram.
“Minha avó sempre dizia que o maior sonho dela era saber ler. E quando conseguiu, a doença veio como uma espécie de ladrão, levando tudo” — Wglédia Darck, neta de Setembrina.
Setembrina, que antes era o alicerce da família, tornou-se uma figura dependente. A avó carinhosa deu lugar a uma pessoa confusa e às vezes agressiva, que já não reconhecia os próprios filhos. No entanto, mesmo no ápice da doença, ela se lembrava de Pedro, seu companheiro de vida, um vínculo que nem o Alzheimer foi capaz de apagar.
Mercês: a matriarca que resistiu às mudanças
Mercês Batista da Silva Almeida nasceu em 1930, em Campanário, Minas Gerais. Criada em uma família humilde, casou-se aos 15 anos com Manoel, um primo distante. A vida foi marcada por deslocamentos e trabalho árduo em fazendas, seja cultivando ou lavando roupas às margens de rios, como o Buritis, em Denise, Mato Grosso.
Apesar das dificuldades, Mercês mantinha um espírito agregador. Era ela quem reunia filhos, netos e vizinhos em celebrações religiosas e culturais, como as festas de São João. Essas tradições, além de preservar a memória familiar, eram um ato de resistência em tempos difíceis. Quando perdeu o marido em um trágico acidente, Mercês assumiu sozinha o papel de chefe da família. Nunca se casou novamente, talvez por crer no amor eterno ou por escolha. A doença de Alzheimer, que surgiu anos mais tarde, apagou as memórias recentes, mas não as histórias que ela contava com tanta paixão sobre a juventude.
“Minha mãe era apaixonada por narrar o passado, especialmente sobre os tempos da Revolução do Café, na época de Juscelino Kubitschek” — Maria Aparecida, filha de Mercês [ao relembrar que mesmo em meio ao esquecimento causado pelo Alzheimer, a força e a resiliência da mãe permaneceram como legado].
O impacto do Alzheimer: entre a ciência e a realidade familiar
O Alzheimer, descrito pela primeira vez pelo neurologista Alois Alzheimer em 1906, é uma doença neurodegenerativa que afeta áreas do cérebro responsáveis pela memória, linguagem e comportamento. No Brasil, estima-se que 1,2 milhão de pessoas vivam com a condição, sendo a maioria os idosos.
A doença segue um curso progressivo. No início, há lapsos de memória e dificuldade em lembrar fatos recentes. Com o avanço, surgem mudanças de comportamento, perda de habilidades básicas, e, nos estágios finais, o comprometimento das funções motoras e cognitivas mais elementares.
Para famílias como as de Setembrina e de Mercês, lidar com o Alzheimer é um desafio imenso. Não apenas pelo impacto emocional de ver alguém querido desaparecer em si mesmo, mas também pelos cuidados diários exaustivos.
“Minha avó voltava a ser criança, jogava a comida fora, só queria doces e, às vezes, queria fugir de casa, mesmo sem saber para onde ir” — Wglédia Darck [sobre os últimos anos de vida da avó].
Tradições e modernidade: o legado das duas mulheres
Setembrina e Mercês deixaram marcas profundas em suas famílias, tanto pelas lutas enfrentadas quanto pelos valores que transmitiram. Enquanto Setembrina simboliza a persistência pelo aprendizado em meio a adversidades, Mercês representa a força das tradições e o papel da mulher como mantenedora da unidade familiar.
O Alzheimer pode ter apagado parte das memórias de ambas, mas não o que elas significaram para suas famílias. Hoje, os descendentes buscam preservar essas histórias, passando adiante lições de resiliência e de amor.
E assim, as vidas de Setembrina e Mercês se tornam testemunhos de tempos difíceis, mas também de como, mesmo diante da perda, a memória coletiva pode ser um ato de resistência.
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Texto: Beatriz Tavares | Revisão: Cristiano Barreto
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