Das raízes na roça às trincheiras da educação e da igualdade, Marilza Costa é símbolo de resiliência e luta
Marilza da Silva Costa nasceu em Tangará da Serra, em uma pequena comunidade rural, como a caçula de seis irmãos em uma família pioneira na região. Filha de pais com pouca escolaridade, o pai cursou apenas a primeira série, e a mãe sem saber ler nem escrever. Mary cresceu em um ambiente onde o trabalho no campo era indispensável para o sustento, e a educação era vista como uma ferramenta mínima de defesa contra injustiças.
Desde cedo, Marilza enfrentou as desigualdades com coragem. Na infância, a escola seriada da colônia parecia protegê-la do preconceito, mas, ao avançar nos estudos, especialmente no ensino fundamental, começaram as dores do isolamento social e da discriminação. “Eu não era escolhida para os grupos, era sempre a última”, relembra. Ainda assim, encontrou força em sua própria resistência e em alianças espontâneas com colegas que, como ela, pertenciam à grupos de pessoas discriminadas.
“Minha mãe não sabia ler, mas fazia questão que aprendêssemos o básico para não sermos enganados. Não era fácil, faltava material, roupas, mas a escola seriada, onde todos estavam na mesma situação, tornou o início mais leve. Foi depois, no ensino fundamental, que comecei a perceber os olhares atravessados e o preconceito, e aí, aprendi a lutar”, relembra.
Nega Mary aprendeu cedo a se defender e a lutar pelos outros. Esse espírito de solidariedade e justiça moldou toda sua trajetória, desde as discussões com professores do ensino médio para garantir inclusão, até a determinação que a levou ao ensino superior, à pesquisa científica e à liderança comunitária. Hoje, 20 de novembro de 2024, Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado pela primeira vez como feriado nacional, sua história ecoa como um símbolo de superação e resistência negra em um país ainda marcado por profundas desigualdades.
Essa luta por igualdade e inclusão, iniciada na juventude ao defender colegas que também enfrentavam discriminação, mudou sua vida. Hoje, Marilza é uma referência, não apenas na área da educação, mas também na cultura e na defesa dos direitos das minorias, temas que marcam sua atuação dentro e fora das salas de aula.
Consciência Negra: a trajetória de uma mulher que fez da educação sua maior arma
O fato do Dia Nacional da Consciência Negra se tornar feriado em todo o Brasil, é uma conquista importante, pois nesta data, que honra Zumbi dos Palmares e a luta pela igualdade racial, também nos convida a refletir sobre histórias de superação e protagonismo. Uma dessas histórias é a de Marilza da Silva Costa, uma mulher negra que transformou barreiras em pontes para o conhecimento e que hoje inspira jovens em Tangará da Serra, sua cidade natal.
Marilza cresceu cercada pelos desafios da roça e pelas limitações de um sistema que pouco vislumbrava o futuro de uma mulher negra na universidade. “O foco da família era o sustento”, relembra Marilza, com olhos que guardam a luta de quem precisou trilhar um caminho que jamais fora percorrido pelos seus. Sua trajetória começou de maneira inesperada, com uma vizinha insistindo para que ela fizesse a inscrição no vestibular da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). “Ela dizia: ‘Neguinha, vai lá. Eu faço sua inscrição’”, conta.
Mesmo sem entender completamente o que significava ser universitária, Marilza deu o primeiro passo. Escolheu Biologia por uma conexão inexplicável, quase intuitiva, com o estudo da vida. “Quando me explicaram o que a Biologia fazia, eu soube: era isso que eu queria”, diz, sorrindo ao lembrar. Mas os desafios estavam apenas começando.
Sem dinheiro para transporte ou alimentação, Marilza pensou em desistir no segundo mês de curso. “Cheguei a ir a pé para a Unemat fazer prova”, lembra. Foi quando uma professora percebeu seu potencial e se dispôs a ajudar, cobrindo seus custos básicos até que ela conseguisse uma bolsa de estudos. Essa bolsa, obtida em um projeto sobre polinizadores no cerrado, não apenas garantiu sua permanência na universidade, mas inspirou sua paixão pela pesquisa científica.
O tema de seu trabalho de conclusão de curso (TCC) abordou a interação entre polinizadores e anonáceas, uma planta típica do cerrado do grupo das pinhas, investigando como essas espécies resistiam às queimadas frequentes. “Descobrir como elas sobrevivem às adversidades me instigou, pois parecia que eu também estava lutando para sobreviver em um ambiente que me desafiava constantemente”, reflete. A pesquisa resultou na publicação de um capítulo de livro e lançou Marilza em uma trajetória acadêmica brilhante.
Após concluir a graduação em 2006, Marilza fez o Mestrado em Ciências Ambientais, também na Unemat, aprofundando suas pesquisas sobre a biodiversidade do Cerrado, pesquisando o vetor da dengue como objeto da atuação dos Agentes de Vigilância Ambiental e de pesquisas com plantas inseticidas do Cerrado, em Tangará da Serra, MT. Mais tarde, ingressou em seu doutorado na Universidade Federal de Viçosa (UFV), onde consolidou seu conhecimento e se tornou referência na área com a pesquisa Acetogenina como ferramenta de controle do Aedes aegypti: uma perspectiva de toxicidade e regulação gênica, que foi defendida em inglês (Acetogenin as a tool to control Aedes aegypti: a perspective of toxicity and gene regulation).
Hoje, Marilza é professora no ensino básico em uma escola particular, mas seu legado acadêmico continua vivo. Como contratada da Unemat, já orientou jovens pesquisadores que também enfrentam as dificuldades de ser pioneiros em suas famílias. “Ensinar é minha forma de retribuir tudo o que a educação me deu. Quero que outros jovens negros e negras saibam que é possível chegar onde sonharem”, declara.
Neste Dia da Consciência Negra, a história de Marilza é um testemunho de resistência e esperança. Em uma sociedade onde a desigualdade racial ainda é uma ferida aberta, ela é um exemplo de como a educação pode ser o alicerce de um futuro mais justo e inclusivo.
Marilza da Silva Costa, Mary Costa ou simplesmente Nega Mary, é mais do que uma professora, uma pesquisadora ou uma mulher negra de sucesso. Ela é uma ponte entre o passado de lutas, o presente de resiliências e o futuro de possibilidades, servindo de exemplo para tantas outras pessoas que se recusam a aceitar os limites impostos.
Do silêncio à liderança: como o teatro ajudou e transformou Nega Mary em símbolo de resistência cultural
A cultura entrou na vida de Marilza como uma revolução silenciosa, mas arrebatadora. Na universidade, onde buscava superar a timidez e as marcas de uma infância de exclusões, ela encontrou no teatro a ferramenta que transformaria sua relação consigo mesma e com o mundo.
A cultura entrou na vida de Marilza como uma revolução silenciosa, mas arrebatadora. Na universidade, onde buscava superar a timidez e as marcas de uma infância de exclusões, ela encontrou no teatro a ferramenta que transformaria sua relação consigo mesma e com o mundo.
Essa descoberta aconteceu em um momento em que a jovem universitária, vinda de uma cultura patriarcal onde os homens dominavam as decisões, começava a questionar e reconstruir seu papel na sociedade. O espaço cultural da universidade foi essencial para esse processo, tornando-se um marco de transformação pessoal e inspiração.
Hoje, coordenadora do Ponto de Cultura Flor do Mato, em Tangará da Serra, Nega Mary carrega no coração a missão de devolver à comunidade o que recebeu como oportunidades. “Sempre fui ajudada por alguém. Agora é a minha vez de oferecer esse acesso, de ajudar outras pessoas a se encontrarem e se posicionarem”, diz, com brilho nos olhos.
Entre oficinas, rodas de conversa e apresentações artísticas, ela utiliza a cultura como ferramenta de transformação social, especialmente para aqueles que também enfrentam barreiras sociais e preconceitos. “Não é fácil, muitas vezes, eu tiro da boca para manter o projeto, mas a luta vale a pena. A cultura é isso: dar direito, abrir caminhos e mostrar que é possível ocupar qualquer espaço.”
E assim, entre perucas de lã para peças teatrais e noites de trabalho incansável, Mary inspira uma nova geração a encontrar no palco — e na vida — o espaço de que precisam para brilhar.
Marilza e o “Flor do Mato”: cultura e consciência como ferramentas de transformação
Além de sua atuação na educação formal, Nega Mary coordena o Ponto de Cultura Flor do Mato, em Tangará da Serra. O espaço é dedicado à preservação e celebração das tradições populares, englobando música, dança, teatro, culinária e outras expressões artísticas que refletem a rica diversidade cultural da região.
Sob sua liderança, o Ponto de Cultura tornou-se um ambiente de aprendizado e reflexão, promovendo oficinas culturais e artísticas para públicos de todas as idades. As rodas de conversa organizadas por Marilza são um marco do espaço, abordando temas como a preservação ambiental, a valorização do papel da mulher na sociedade e a importância da representatividade negra.
“Vejo o Flor do Mato como uma extensão do meu trabalho como educadora. É um lugar para despertar consciências e resgatar histórias, além de construir um futuro em que nossa cultura e identidade sejam respeitadas”, diz Marilza.
Com essas iniciativas, ela amplia ainda mais seu impacto na comunidade, reforçando que a transformação social passa pela educação, pela cultura e pelo orgulho de nossas raízes.
Galeria de imagens de Nega Mary
Texto: Diones Krinski | Revisão: Ana Lúcia Andruchak